~~O tempo~~

E tudo pareceu tããão bom. Tão certo... Tão indiscritível...
Eu sou do tipo metida, vê? Do tipo que nunca admite lhe faltar nada. Nem idéias, nem soluções, nem homens, ou amores, ou palavras...
Mas agora sou forçada a admitir que naquele beijo, me faltou palavras... Me faltou ar. Me faltou idéias, ou soluções... Uma vez que tudo parecia solucionado. Tudo parecia resurmir-se àquilo.
Àquele ínfimo e íntimo contato dos lábios dele contra os meus...
O mundo poderia acabar naquele momento... Poderia mesmo.
Quando ele me lambeu, mordeu, mordiscou, sugou, chupou e beijou nos lábios, por um segundo, eu achei mesmo que o mundo tinha acabado ali...
Pelo modo como cada segundo parecia a eternidade, e cada eternidade parecia um segundo.
Pela forma como o tempo parecia relativo e sem sentido e pela forma como tudo de fato ficaria certo... Ou, talvez já estivesse certo!
Aquilo era certo. Aquilo era verdadeiro.
Aquilo era real.
Um beijo.
Um beijo foi tudo o que levou para que eu esquecesse do mundo. Do meu marido, dos meus casos e do meu mais recente ex-amante. E digo ex porque após esse beijo, e o fato de ele não ter aparecido no hospital ao longo de todo esse tempo haviam tirado dele todo o meu desejo ou atenção...
A verdade é que se ele ainda não havia perdido completamente o seu encanto, ele havia agora... Meu trabalho havia perdido agora... Tudo...
Tudo havia perdido o sentido agora... Tudo, menos ele, e eu. E nossos lábios, e nossas línguas e vez ou outra nossos dentes, com os quais puxávamos os lábios um do outro mais para perto.
O tempo não existia... Eu não existia... Ele não existia...
Naquele tempo existiu um nós.
Existiu um nós que nunca existiu...
Um nós que quando ele se afastou e me olhou nos olhos eu já sabia...
Que o nosso tempo havia acabado. O tempo dos sonhos, de realidades, de prazer e felicidades...
O tempo de um nós que eu agora queria mais que tudo... Mas que para ele... Parecia ter sido um pesadelo...
Esse tempo, acabara.

~~O beijo~~

~~O beijo~~
Naquela noite, eu tive momentos de lucidez e consciência, outros não tão conscientes assim... Talvez tudo não tivesse passado de um sonho...
É, eu achava que não...
Mas o que sei é que ao longo de minha estadia no hospital com aquele são bernardo guardando meu sono e me protegendo até mesmo do que não precisava, minha recuperação foi bem rápida.
Quer dizer, "rápida"...
Era o que eu ouvia dos médicos...
Eram apenas palavras meio soltas até os últimos dias, quando eles de fato me deixavam ficar consciente o suficiente para entender tudo o que havia acontecido...
O tiroteio havia sido bastante longo... Longo o suficiente para que os vizinhos do bar chamassem a polícia a tempo de capturar os atiradores...
Quando a polícia chegou viu uma cena digna de quadros de revolução...
A quantidade de corpos no chão era enorme, uma vez que o bar estava lotado, e ninguém escapara sem pelo menos um tiro... O barman e algumas outras pessoas estavam mortas... E eu quase me unira à esse montante não fosse pelo fato de que ele havia permanecido segurando o corte na minha jugular com o braço bom.
Ele, meu são bernardo protetor... Meu cão de guarda, meu fiel companheiro.
Eu devia minha vida à ele e eu não sabia como pagar essa dívida...
Não tinha idéia...
...
Acordei de meus devaneios com o bater leve na porta do banheiro do meu quarto no hospital. Já estava vestida, e o rasgão em meu pescoço já havia diminuído bastante, me possibilitando mexer um pouco o braço. Bem pouco por enquanto, mas o suficiente para que eu me vestisse...

"Você precisa de ajuda...?"

A voz grossa veio do outro lado da porta e eu o reconheci de imediato. Olhei uma última vez naquele espelho e notei que estava consideravelmente pronta, faltava apenas fechar o zíper do vestido em minhas costas, uma vez que estava vestindo um vestido justamente para mover o mínimo possível o braço do lado da jugular que havia sido ferido.

"Preciso sim. Pode entrar."

Não, eu não havia trancado a porta, mas sabia que não seria necessário. Ele não deixaria ninguém entrar, e ele com certeza já havia me visto em situações piores, bem piores, uma vez que eu imagino que apagada e sangrando quase até a morte não deveria ter sido muito sexy.
Ele entrou e me observou, seus olhos passaram por meu corpo todo, mas diferentemente do que aconteceria se outra pessoa me olhasse daquela forma, aquilo não me incomodou. Sem dizer uma palavra aproximou-se e fechou o zíper de meu vestido com cuidado, evitando até mesmo chegar muito próximo de meu braço.

"Você sabe que poderia encostar em mim se quisesse, certo...? O braço está ótimo. É o pescoço que está meia-boca."

Ele me lançou um olhar severo por alguns instante, antes de acariciar meu braço levemente.

"Sei disso. Mas as chances de você se mexer demais sem a minha ajuda e tirar esse curativo do lugar já são bem grandes para que eu a ajude..."

Lhe dei um rosnado baixo, que só serviu para ele dar um riso orgulhoso e exibido, o que acabou arrancando de mim um sorriso... Afinal, ele estava certo, não?
Como sempre.

"Ah é? E que pretende fazer? Se mudar para minha casa e ficar me seguindo com algumas gazes e faixas?"
"Não. Você vai para a minha."

Ele respondeu antes que eu pudesse terminar meu riso, me fazendo engasgar um pouco no riso e corar imensamente.
Ele estava falando sério?

"Não posso.. Quer dizer... Eu tenho a minha casa... E... E meu trabalho!"

Pensar no meu chefe que nunca aparecera durante toda a minah estadia no hospital me enrolou o estômago.

"Não importa. Não vou te deixar e não suporto seu marido. E nem o homem que te levou até o bar daquela vez..."
"O taxista?"

Eu tentei fugir da pergunta, rir... Mas ele sabia bem o que me levava a beber. Ele sempre soube. E bastou um olhar severo para que eu soprasse a franja do rosto e me voltasse de frente para ele, agora de costas para o espelho.

"Era meu chefe... O dono da empresa..."

Eu ignorei a olhada feia de seus olhos negros diretamente nos meus.

"Não me olhe desse jeito... Não me tirou nada que eu já não tivesse perdido..."
"Te fez levar um tiro."
"Eu teria levado o tiro de qualquer jeito. Ele me deixou em casa. Meu marido que havia trancado a porta."
"Ele de novo."

Ele rosnou para mim e me pegou pelo braço bom, levou os lábios até os meus e me beijos.
De uma forma que eu nunca havia sido beijada antes...

~~Dedos Entrelaçados~~

~~Dedos Entrelaçados~~

Dizem que a esperança é verde. Ou era a força de vontade que era verde?
É, eu não me lembro bem... Mas a verdade é que nesse momento não me lembrava muito bem de nada...

As coisas estavam começando a se misturar em minha cabeça, e embora alguns dias antes tudo houvesse sido muito claro para mim, tudo aquilo agora não passava de um borrão que eu não sabia explicar.
Mas não era como se eu estivesse mesmo preocupada com isso agora.
Eu sabia que estava no hospital, e sabia que ele agora passava dia e noite ao meu lado.

Sempre ali.

Eu podia sentir o perfume dele sempre à minha volta, próximo, alerta. Concentrado.
Eu nunca o havia visto concentrado antes, mas me parecia uma imagem agradável... Talvez combinasse com aquele semblante sério e ao mesmo tempo... Descontraído.
Era como se ele sempre escondesse algo. Sempre tivesse uma carta na manga... Um às que eu não sabia bem de onde sairia, ou o que seria ou o que faria.
Mas ele era sempre assim.

Mas eu gostava de sua presença.
Mesmo não podendo de fato vê-lo ou falar nada, nem demonstrar que eu sabia que ele estava ali.
Eu gostava. Me deixava mais calma.
Era como se de alguma forma eu soubesse que tudo ficaria bem. E ficaria bem porque eu não estava sozinha. Porque ele estava ali.

Eu acho que demorou quase uma semana para que eu estivesse forte o suficiente para abrir os olhos direito, mas eu não tenho certeza uma vez que vivia entre a consciência e o blackout completo.

"Hm..."

Esse foi o grunhido que saiu de meus lábios quando eu consegui abrir os olhos numa madrugada, a luz estava bem baixa e por isso não em agrediu muito os olhos.
Apesar disso, ele não dormia. Mas isso não era bem novidade... Rezava a lenda que ele nunca dormia.

"Olá..."

Eu virei o rosto para ele e sorri. Aquele comprimento era um tanto quanto formal demais na condição em que estávamos, mas, aquilo não importava, ouvir a voz dele era bom.

"Oi... Há quanto tempo nós..."
"Não importa."

Ele me cortou calmamente, e embora aquilo geralmente me deixasse furiosa, não foi o que aconteceu naquele momento.

"Obrigada por estar aqui."

Ele pareceu um pouco chocado com aquela frase, mas não demonstrou.

"Não foi nada. Fico feliz que esteja bem."
"Digo o mesmo... O que houve?"
"Parece que foram apagar o barman depois de ele ter testemunhado um assalto ou algo assim... Mas escolheram um momento de pico e por isso acabamos meio...."
"No lugar errado na hora errada?"

Ele sorriu, chegando até a dar uma risada, eu retribuí da mesma forma, mas algo me incomodava um pouco no pescoço.
Cheguei a levantar a mão para tocar e tentar ver o que era, mas ele, num movimento bastante rápido e furtivo a impediu no meio do caminho.

"Não pode ficar tocando..."
"Blé... O que houve exatamente? Levei um tiro?"
"Foi, pegou de raspão mas atingiu a jugular, por isso está demorando tanto à cacitrizar e você perde tanto sangue..."
"Ah.. E você?"
"Foram só alguns no braço, nada sério..."
"Alguns?"

Ele deu de ombros, e eu sorri.

"Agora volte à dormir... Precisa se recuperar..."
"Nah, não vou te deixar aí acordado sozinho."

Ele riu da minha expressão de brava um tanto quanto patética, o que me fez desistir dela e abrir um sorriso.

"Não aguentaria me acompanhar nem se estivesse saudável."
"Metido..."

Eu o olhei com uma expressão irônica embora soubesse que aquilo provavelmente era verdade. Era muito difícil acompanhá-lo, em muitas coisas.
Ele apenas me deu mais um daqueles sorrisos enigmáticos e eu acabei desistindo mais uma vez.

"Está bem, mas venha cá, chegue mais perto."

Ele pegou a cadeira e carregou-a para mais próximo da minha cama, quando sentou-se, eu estiquei um dos braços e puxei uma das mãos dele para cima de minha maca, entrelaçando os dedos com os dele.

"Até amanhã de manhã?"
"Até. Boa noite."
"Para você também se alguma hora acabar adormecendo..."
"Obrigado."

Eu sorri para ele e fechei os olhos, tentando ajeitar melhor o pescoço.
Podia sentir os olhos dele sobre meu corpo doente, mas de certa forma, não me importei.
Não havia ali nenhum segredo obscuro ou nada que ele não conhecesse... Exceto se houvesse ali alguma nova cicatriz, mas, essa nem mesmo eu conhecia.
Podia sentir o perfume dele à minha volta e embora aquilo fosse tudo muito novo, era bom. Era como ter um pedaçinho do lar comigo. Um lugar onde recostar a cabeça sem preocupações.
Ele era meu porto-seguro.

~~ Luz.~~


Forcei e abri os olhos. A luz me cegou um pouco, mas eu precisava saber. Precisava saber quem estava ali. E então, notei o quanto estava enganada.
Não era ele quem estava ali, ao meu lado, cuidando de mim, e tão pouco era o meu marido.

"Mandei não abrir..."

A voz dele estava diferente e ficando cada vez pior e eu, agora, entendia o que estava acontecendo. A voz dele estava assim por causa de um zumbido constante dentro do meu ouvido.
Tudo que ouvia estava assim, mudado, bizarro. Estranhamente grosso e errôneo.
Meus olhos encontraram os dele, mais negros do que eu me lembrava de já os ter visto alguma vez na vida, e aquele pensamento besta e sem motivo me arrancou um sorriso. Fraco.
Me sentia indo para o paraíso. Não estava bem preocupada em saber o que tinha acontecido sabe? E veja bem, não é que eu quisesse morrer. Não, não gostava de suicidas. Apenas que naquele momento, naquele leito de hospital eu encontrara uma paz que nunca encontrara antes na vida.
Eu estava fraca, morrendo sabe-se-lá de quê, com tontura, a visão embaçando, mas, meu leito de morte até que estava muito melhor do que eu jamais havia imaginado, quando por vezes imaginava minha morte sempre me imaginava sozinha, numa cama de hospital, com o fígado num estado tão deplorável que nem mesmo Hannibal quereria comê-lo.

"Oi..."

Minha voz estava agora ainda mais fraca e ridícula e eu encarei meu companheiro de bar coçar a barba desgostoso, levantando-se da cadeira ao lado do meu leito e gritando por mais médicos.
Era ele afinal... O único capaz de me perdoar, o único capaz de me entender, o único que estava ali para assistir a minha morte.

Eu queria saber mais dele, se estava bem, se ficaria bem. Ele estava comigo no bar, e ainda assim, enquanto eu estava atirada num leito sem nem saber mais o que era em cima e o que era embaixo, ele já estava de pé, firme como um touro, cuidando de mim.
Ele ficaria bem, eu esperava... E embora eu naquele instante quisesse cuidar dele, minhas forças começavam a se esvair.
Meus olhos se fecharam sem minha permissão. Eu queria vê-lo mais. E aos poucos senti o ar começar à me faltar. Lentamente.
É, aquilo não era como ir para o paraíso. Era como ser sufocada por uma enchurrada de mágoa que eu não conseguia explicar, e muito menos, naquela situação, me livrar.

Eu ouvi quando os médicos invadiram meu quarto, e pude sentir quando começaram a mexer em mim. Eu podia sentir os olhos preocupados dele sob mim.

E então, sendo ele a última coisa que passou minha mente, apaguei de novo...

~~ Olhos.~~

E os barulhos dos tiros zuniam em meu ouvido até que, de súbito me projetei para a frente e abri os olhos.

Quer dizer... Eu tentei.

Tentei me projetar para frente ou abrir os olhos, mas, meu corpo não me obedecia...
Pesava como um corpo morto e por um instante, eu mordi os lábios.

Mas o que estava acontecendo?
Tive a sensação de já ter vivido tudo aquilo e tentei com mais força mover o corpo.

Nada.

Sem resposta.

Respirei fundo e tentei me lembrar de quando fora que já havia vivido aquilo, porém, não me lembrei. Parecia que quanto mais eu tentava lembrar, mais as lembranças fugiam de minha cabeça, e então, eu tentei não pensar nele.
Para que ele não desaparecesse.

Ele...

Não pude evitar. Minha mente atingiu-o como se fosse o último degrau de uma longa escada.
Seria ele sido um sonho?

Sonho!
Sim, eu havia vivido isso num sonho!

E então, quando meu cérebro finalmente havia chegado em uma conclusão boa, a dor me dilacerou, quase como se partisse-o ao meio.
Minha cabeça doía e eu estava começando a ficar tonta.
Sentia algo quente em meu pescoço, porém, eu não podia ver, não podia tocar para descobrir!!

Senti o cheiro de sangue e achei por um segundo que fosse minha pressão caindo.
Sempre que ela cai eu sinto cheiro de sangue...
Sim, deveria ser isso.

A tontura, a fraqueza, o cheiro de sangue.
O próximo sintoma seria a visão negra, porém, como não conseguia abrir meus olhos, não conseguiria distinguir quando ela chegasse.

Foi quando eu ouvi aquela voz...

"Enfermeiras!! Enfermeiras!!"

Aquela voz poderosa, potente, capaz de amolecer-me as pernas mesmo deitada numa cama, ou talvez fosse a pressão...

... Ele... estava ali? Comigo? Mas como era possível?
Afinal, aonde eu estava???

O desespero começou a tomar conta de mim quando notei que quanto mais nervosa e desesperada eu ficava mais tonta eu ficava, mais perdida, com mais dor...
Minha cabeça parecia capaz de explodir enquanto eu tentava desesperadamente abrir os olhos, eu forçava, forçava, forçava, mas eles não me obedeciam, até que por fim...

Luz.

Me cegou por alguns instantes enquanto eu os fechava de novo com certo desespero!
Agora que sabia que conseguia me mexer, fazia tudo com mais força.
Puxei uma mão até meus olhos, protegendo-os da luz, e a outra foi até meu pescoço, porém, antes de tocá-lo, uma mão grande e quente parou-a.

Eu quis abrir os olhos para reconhecê-lo, porém, tive medo de não ser ele quem estava ali do meu lado, e por isso, apertei com mais força os olhos.

"Está doendo muito?"

Mas que tom doce de quem fala com criança era aquele?

"Eu chamei as enfermeiras, elas já viram para cuidar melhor de você...
Eu fiquei preocupado quando os médicos atenderam seu celular..."

Médicos?? Mas, afinal...

"A.... Onde... e... eu es...tou?"

Aquela era minha voz?
Por que estava tão rouca e lenta?

"Por favor.. Não fale... Vai tirar o curativo do lugar..."

Curativo...?
Aquela história me parecia cada vez mais séria, real e preocupante, e foi por isso que resolvi me arriscar...
Rezando para que ele fosse verdade, eu abri meu olhos e tirei minha mão da frente.

























~~O Vermelho~~

Para nós estava claro como seria essa noite, mais uma vez encheríamos a cara, nos arrastaríamos pelas vielas tortas de nossa bela Artanha até chegarmos algum mausóléu...
Algumas noites nós apenas batíamos papo...
Outras acabávamos chorando bêbados um nos ombros do outro, ou às vezes, dividíamos o táxi e apenas observávamos as luzes da cidade, contando carros.
O que será que aconteceria hoje?
Olhei então para a rua, vazia como sempre e olhei para ele enquanto serviam nossas taças.
Ouvi meu cérebro cantarolar "The show must go on" enquanto envolvia a taça com meus dedos. O vidro estava gelado, e minhas mãos começavam a marcá-lo com seu calor ao redor de meus dedos.
Peguei a minha e virei-a num gole só.

Gulp.

Mas que vodka forte.

Foi então que por algum motivo, quase como se por reflexo, ou num ataque de meu 6º sentido, olhei mais uma vez para a rua e então lá estavam 5 homens armados atirando ruidosamente para dentro do bar, onde as pessoas já haviam rendido-se e sequer moviam-se, até cairem mortas.

Mas o quê...?

Não... Não tive voz para perguntar isso mais alto que meus pensamentos...
tudo começou a acontecer em câmera lenta.
Era como se eu visse cada bala acertar o alvo.
Taças se espatifando.
Cervejas invadiam o ar caindo sobre as manchas vermelhas no chão, enquanto os que já não caíam mortos jogavam-se no chão.

Rendidos.
Feridos.
Sem ar.
Sem armas.
Sem defesa.
Apenas buscavam esconderijo e proteção dos projéteis que sem diferenciar sexo, idade, cor de pele, de cabelo, de olhos, se as bolsas eram originais ou se as roupas eram de grife, atingiam seus corpos de pele macia e sem armadura.

~~ A Bebida~~

Ele sorriu e assentiu com a cabeça, tenho certeza que junto de mim pensou que nós não mudaríamos nunca.

Eu olhei ao redor um pouco desorientada, estava cansada... Muito mais cansada do que o normal... Talvez fossem os momentos de paixão durante o dia... Mas algo me parecia estar errado... Algo dentro do meu cérebro apitava em sinal de perigo, e eu achava ser a falta da álcool, afinal de contas, não era comum sentarmos daquela forma e não beber.

Chamei o garçom, que sorriu para mim de uma forma mais íntima do que eu gostaria.. Mas, o que eu poderia fazer?? Nos últimos dias eu andava indo todos os dias no bar... Meu marido devia estar de fogo para "trabalhar" tanto... Enfim, logo que o mesmo veio nos atender, ele interveio.
Pediu uma garrafa da vodka mais cara que tinham ali, uma de garrafa leitosa e comprida que sempre ficava exibida no canto do balcão, e naquele instante, mesmo antes de beber, e sem ser vidente, claro, eu tive certeza de uma única coisa: Com certeza, essa noite acabará exatamente como a anterior, porém, dessa vez, com uma bebida mais cara.

E talvez, se tivéssemos sorte... O dia dele teria sido melhor que o comum e acabaríamos rindo à toa na rua enquanto seguíamos até o ponto de táxi mais próximo...


~~O Bar~~


Foi então que me sentei mais uma vez diante dele naquela mesma mesa de bar, ele sempre se sentava ali. Parecia um lobo velho, sempre no mesmo posto de combate e observação.

Não estava velho, e nem sequer tinha a aparência altiva e esperta de um lobo, mas fingia tamanha astúcia e perícia em sua arte que seria possível perder horas apenas analisando todosos sinais.

Ele parecia já esperar que eu me sentasse, como se tudo sempre soubesse, e então,agora que nada mais me restava a fazer,além de beber, claro, eu me via encarando seu velho terno negro surrado que eu mesma havia surrado na noite passada.


A noite passada fora tensa sem igual. Eu ficara trabalhando, não"trabalhando", trabalhando de verdade!! Até passar da meia-noite. Quando resolvera por fim ir para casa encontrara aporta trancada (e não que esse fosse meu problema) mas geralmente a porta trancada significava que ainda demoraria. Tinha vindo para o bar de jazz de carro e só para piorar as coisas um grupo daquelas "mulheres de vida difícil" haviam decidido transformar meu capô no ponto delas. Tirei elas de cima do meu carro na porretada, literalmente falando, já que tive de tirara primeira delas pelo cabelo para enfim elas entenderem que não ficariam vivas se ficassem sobre meu capô.

Enfim, além do nojo inimaginávelmente grande do pobre capô do carro, que agora já devia ter AIDS,quandoentrei no bar escolhi a bebida errada.

Era amarga, o que me deixou de mal-humor, e por isso, eu socara seu peito diversas vezes, até deixar o terno surrado. Maldita indicação ruim.

Não, com ele eu não tinha nada exceto confidências. Ele me contava dos problemas dele, e eu lhes contava os meus. Bebíamos e depois íamos embora.

Mas, enfim, voltando à aparência dele de agora...


Olhei para as marcas de batom no pescoço dele, eram de um roxo beterraba de extremo mal gosto, enquanto ele encarava meus lábios com o batom borrado. Mas aquelas marcas em seu pescoço não pareciam ter sido feitas por nenhum tipo de "mulher", quer dizer... Uma boca gigantesca e quadrada em um batom roxo beterraba... Bom... Eram marcas de um batom feio, e com certeza não eram de meu batom vermelho sangue.

Foi então que arrumei meu amassado vestido de cetim, não que isso fizesse diferença,uma vez que ele mesmo parecia ter sido atropelado por um caminhão, e apoiei-me contra as costas da cadeira, olhando-o e rindo. "Nós Realmente Jamais Vamos Mudar, Não É?"


Infelizmente, àquela altura, com as lembranças da noite de ontem, a ausência de meu deus magnânimo, e a existência de meu marido com aquela ratinha em minha casa pareciam ter me feito perder todas as esperanças...

~Táxi~

O taxista não parecia muito interessado na minha pressa de sair de perto de casa, de forma que ele sequer acelerava o maldito Astra que estava dirigindo.
Era possível ouvir aquela mixaria de motor roncar por nada, apenas para gastar mais gasolina e aumentar o taxímetro enquanto ele rastejava aparentemente procurando trânsito.
Apesar de já estarmos um pouco mais distante de casa, e eu não ter pressa alguma para chegar até o bar, eu estava começando a me irritar, e assim puxei o maço de dinheiro que tinha e mostrei-o pelo espelhinho do táxi.

"Lhe pago a mais se você puder parar de enrolar e procurar trânsito e for direto ao meu destino."

Os olhos do bigodudo brilharam e ele logo voltou a dirigir, e não mais rastejar, pelas ruas.
Não demorou muito mais para chegarmos lá, já estava bem tarde, e logo eu joguei um pedaço do maço na mão dele sem sequer contar o quanto fora.
Apesar disso, devia ser uma quantia grande já que o velho contou o dinheiro e sumiu na virada da esquina sem nem pensar em voltar.

"Ai, ai..."

E lá estava eu de novo buscando um lugar para afogar as minhas mágoas, agora maiores que nunca.
A saudade me queimava o peito mais do que qualquer bebida que eu provara já havia queimado minha garganta.
Os lábios pressionavam-se sem jeito em busca dos lábios dele e eu via sua imagem e sentia seu cheiro sempre que fechava os olhos.

"Ahn..."

Fiquei alguns segundos parada à porta e logo entrei.
Estava tudo igual, como de costume.
A pequena banda de jazz tocava ao fundo, do lado do balcão. Os garçons serviam as mesas não muito cheias, e nem vazias.
Reconheci então uma figura que estava escondida por entre a multidão, meu colega de copo, o que costumava passar as noites ao meu lado discutindo causos.

Ele parecia igual, e provavelmente eu, com aquele vestido, também pareceria...

De qualquer forma, aquilo não fazia diferença, embora houvesse mudado por dentro eu ainda não sabia se haveria alguma mudança por fora, e até que ela ocorresse, eu não poderia contar a ninguém...
Quanto menos gente soubesse, menor seriam as chances de espalharem para alguém que pudesse arruinar aquilo...
Por um segundo me peguei pensando sobre aquilo...
E será que mudaria?

"Tomara..."

Olhei minhas mãos, porém nelas não haviam nenhum tipo de aliança brilhante.
Sim, a aliança que faria conjunto com o cavaleiro de armadura brilhante que viera me salvar...

Bem.. Agora só me restava entrar, esperar, e talvez, se ainda me fosse permitido... Rezar.

~Vestido~

Toquei a chave na fechadura da porta e ouvi um gemido alto e feminino sair de dentro da sala.

"Aaaahhnnn!!!"
"Merda."

Meu marido ainda não havia terminado o "trabalho" que levara para casa...
Eu respirei fundo e olhei o que vestia. Ainda usava o doce terno que cheirava ao perfume de mogno dele. O cheiro ainda estava forte, delicioso.
Revivia minhas memórias deixando minhas pernas bambas e fracas...

Não podia ir para o velho bar de jazz daquela forma.
O terno poderia perder o perfume dele, e eu sabia que, caso ele não mais aparecesse, aquilo seria a única lembrança que teria..
Talvez doesse mais se eu mantivesse uma lembrança tão intensa viva em minha memória, porém, não valeria a pena ter vivido aquilo se eu fosse desistir por uma simples possibilidade.
Eu mergulharia de cabeça... Mesmo se fosse apenas para quebrá-la quando eu chegasse ao fim do poço.
De que valeria viver se não fosse para aproveitar todas as possibilidades ao máximo?

"Não posso te perder... Tão cheiroso... Pensando bem... Eu não posso perdê-lo de forma alguma..."

Eu abracei meu próprio corpo com carinho, acariciando o terno. E o maravilhoso perfume subiu por minhas narinas, desnorteando-me.
Olhei em volta e respirei fundo. Precisava sair dali.
Corri até a lateral da casa e entrei na garagem, com cuidado, sem fazer barulho.
O carro ainda estava ali, estacionado como de costume.
Eu me lembrava de sempre manter uma troca extra de roupa no carro, para caso fosse necessário uma escapatória rápida.
Aquele caso era de fato uma urgência, uma necessidade.
Abri a porta com muito cuidado e me deitei por cima do banco do motorista.
Puxei a caixinha localizada sob o banco do carona e tirei de dentro dele o velho vestido de cetim rubro.
Estava amassado e com um pouco de cheiro de guardado, porém, troquei-me ali mesmo.

"Perfeito... Ainda cabe."

Após vesti-lo, deixei o terno dobrado dentro da mesma caixa e saí de dentro do carro.
Sai da garagem, tranquei-a e corri para a rua mais uma vez.
E então, peguei o táxi que estava estacionado na esquina de casa e fui em direção ao velho bar de jazz.